Interview with Ruth Dreifuss on 2019 report in Diario de Noticias

Drogas: “Cuidado, Portugal, não se demorem muito na vanguarda”

Apontado no mundo como um exemplo na política das drogas, devido à descriminalização levada a cabo há 20 anos, o país corre o risco de ficar para trás, diz a presidente da Comissão Global de Política das Drogas, Ruth Dreifuss. “São o país mais bem posicionado na Europa para avançar com as novas medidas”, diz outro membro da comissão.

Ruth Dreifuss, ex presidente da Suíça e atual presidente da Global Commission on Drug Policy, organização internacional independente que congrega 14 ex chefes de Estado, incluindo Jorge Sampaio, e pugna pela reforma da política de drogas a nível mundial, não poupa nas palavras. Em Lisboa para a reunião anual da comissão e apresentação do seu último relatório, que teve lugar na tarde desta terça-feira na Câmara de Lisboa, Dreifuss falava, no dia anterior, num encontro com membros da sociedade civil portuguesa.

“Na Suíça propusemos a reforma da lei da canábis. Decidimos que o consumo seria apenas uma contravenção [como se passa em Portugal desde 2001 com todas as substâncias rotuladas como drogas, desde que a quantidade possuída seja “diminuta”]. Mas não é uma boa solução porque continua a ocupar a polícia e mantém a perseguição dos consumidores. E mesmo que se trate de despenalização [o que significa que nem sequer se aplicam multas] isso é importante, mas não podemos ficar por aí.”

Referindo o facto de a reforma de 2001 da política de drogas portuguesa ser ainda hoje apresentada no mundo como inovadora, quando há países, como o Canadá e o Uruguai, assim como vários estados dos EUA, que avançaram já para a legalização e regulamentação de uma das substâncias proibidas – a canábis — Dreifuss deixou um aviso que arrancou gargalhadas na sala: “Cuidado, não se demorem muito na vanguarda”.

“A canábis não deve estar na mesma tabela que heroína”

Aliás, prossegue Dreifuss, quanto à canábis o problema foi sempre mal colocado: “Nunca mereceu ser posta na mesma tabela que a heroína.”Dreifuss refere-se às convenções da ONU que a partir de 1961 estabeleceram o proibicionismo como política global para lidar com determinadas substâncias, entre as quais a canábis e a heroína, transformando-as em “drogas proibidas” e catalogando-as em tabelas. A canábis foi colocada na das mais perigosas, ao lado da heroína. Um erro, considera a política helvética, que afirma: “É evidente que o aumento da potência da canábis é uma consequência do mercado negro. É claro que quem vende está interessado em ter um produto que causa o máximo de dependência.”

E exemplifica: “No tabaco é o Estado que fixa os limites das componentes – nicotina, etc — no produto comercializado e é escandaloso que o Estado se demita da regulação de um mercado que existe.”

Uma opinião secundada na intervenção do médico Rodrigo Coutinho, um histórico do tratamento das adições (esteve na fundação do Centro de Atendimento de Toxicodependentes das Taipas, em 1985, a primeira unidade de saúde especializada em toxicodependência do país, e é atualmente um dos responsáveis da ONG Ares do Pinhal): “Sou psiquiatra e estou muito preocupado com ao incremento das psicoses tóxicas diagnosticadas devido ao aumento do THC [tetraidrocanabinol, a componente estupefaciente da canábis], associado à diminuição do canabidiol, que funciona como protetor, e não estou a ver que haja outra hipótese de esta situação se alterar a não ser com a regulação. Está provado que a canábis dos anos 1980 era muito menos prejudicial.”

“Quando se fala de luta contra as drogas, contra o que é que se luta?”

Marta Pinto, do Grupo R3 – Reduzir Riscos em Rede, uma rede que desde 2004 funciona na área de redução de danos no consumo das substâncias denominadas drogas, redução de riscos – vai mais longe na desconstrução do contentamento português com uma política com 20 anos: “A experiência portuguesa tem sido usada no mundo para defender o proibicionismo. Porque descriminalizar é uma das melhores soluções dentro do proibicionismo. E o proibicionismo, a “guerra às drogas”, é um problema estrutural. As consequências do proibicionismo têm sido interpretadas como consequências do uso de drogas.”

Outro membro da GCDP, o médico imunologista francês Michel Kazatchkine, ex diretor do Fundo Global de Combate à SIDA, Tuberculose e Malária, também presente na reunião, reforça o paradoxo: “Quando se fala de luta contra a droga, contra o que é que se luta? Quando a ONU fala do problema das drogas, de que problema é que estamos a falar? Se amanhã proibíssemos o álcool, que se passaria nos nossos países?”

E responde: “Temos de lutar contra as consequências negativas da proibição. Do nosso ponto de vista, os problemas advêm da proibição. E a despenalização do consumo não os resolve. Vejo a despenalização como meramente uma medida de redução de riscos.”

Para Kazatchkine, como para a GCDP, após quase sessenta anos de proibicionismo e daquilo que consideram as suas consequências desastrosas, a solução é legalizar: “É a legalização que acaba com o mercado criminal. E é razoável começar a legalização pelas drogas de baixa potência – a canábis e a ecstasy. Porque há uma enorme discrepância entre a severidade do regime imposto e as consequências dessas drogas.” E conclui, com uma espécie de apelo: “Vocês são o país mais bem posicionado na Europa para avançar com as novas medidas.”

Um repto que Jorge Sampaio transforma em esperança no encerramento do encontro: “Estamos no começo de uma nova possibilidade.”